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quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Dia 3 – Papo de meninas

27/12/2014 Santa Fé - Mendoza

Hoje seriam mais de 1000km novamente. Mas provavelmente bem mais tranquilos do que ontem: muita pista dupla, menos carros na estrada, pouca chuva (estávamos indo em direção ao deserto). E, de fato, na estrada, tudo foi bem tranquilo, chegamos ainda de dia em Mendoza.

Pista dupla no deserto até Mendoza.


Nestes dias inteiros dentro do carro, a vida a bordo consiste em ouvir música (estamos com mais de sete gigas de música), cantar músicas dos anos 80 (tipo Legião, Kid Abelha e outras tranqueiras que sabíamos de cor quando adolescentes), comer porcarias (mas desta vez, uma boa novidade: há excelentes empanadas assadas nos postos de gasolina YPF – dá pra ir além das bolachas), tirar fotos e conversar.

Na parte da conversa, há um capítulo à parte. Eu sou o único homem da expedição. Homens, em geral, falam menos, aprendem a falar mais tarde que as mulheres e, sobretudo, têm um repertório completamente diferente.

As mulheres têm uma outra relação com as coisas e a vida – entre elas, verbalizar a vida. Podem ser horas sobre a cor do céu, a cor do poste, a mudança de vegetação, o passarinho diferente, a placa com uma logo elegante. Claro que estou com três mulheres que têm cabeça de designer – duas floristas e uma fotógrafa – e isto também significa que podemos brincar de nomear as formas das nuvens e das árvores durante horas. Elas conseguiram ver até a logo do azeite de oliva português Galo em um arbusto que estava uns 20km na nossa lateral. Eu comecei tímido, vendo um jacaré em uma nuvem – e fui repreendido: ah, André, jacaré é café com leite, jacaré tem em todo céu. Depois vi um pica-pau e um bebê alien - ganhei um pouco mais de respeito.

A logo do azeite Galo

Os papos também vão para outra direção. São três mulheres independentes. Não querem ser coadjuvantes de um homem. Se um homem bonito passa por nós, claro, isto é verbalizado também. Tudo é verbalizado. E aí os assuntos vão desde como os homens podem ser legais ou canalhas até como os homens não sabem lidar com mulheres independentes. Pra elas, tenho certeza, conversar muito é uma das grandes alegrias da viagem.

A entrada já diz tudo!

Chegamos em um hotel sem reserva em Mendoza – preferimos assim porque não tínhamos certeza se conseguiríamos chegar. Mas, logo no primeiro, no Urbana Suites, conseguimos um excelente quarto quádruplo (com dois quartos separados, um deles com cama de casal) por uma pechincha. Tomamos banhos todos e partimos para o primeiro bife de chorizo da viagem. E o primeiro vinho também – o Amansado. Seguimos o conselho da portaria do hotel e, três quadras depois, quatro pratos depois, já estávamos recompensados dos primeiros dias cansativos da viagem.



segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Dia 2 – Los Assassinos de Sapos

26/12/2014 Foz do Iguaçu – Santa Fé

Desde o planejamento da viagem, nós sabíamos que este seria o pior dia, com mais de asfixiantes 1000km pela frente. Há sempre um (ou mais de um) dia de perrengue neste tipo de viagem. Normalmente fica no começo, perto do Brasil, porque não há muito para se ver. Mas há outros detalhes que complicam as coisas no início: é uma região tropical e úmida que, no verão, chove torrencialmente. É também uma região famosa por guardas corruptos. E, finalmente, é uma região sem estradas muito vazias – a proximidade com Foz e Buenos Aires faz com que o trânsito seja bastante diferente da Patagônia, por exemplo. Nesta viagem, nós tivemos que enfrentar tudo isto. E mais um pouco.

Eba!

O dia começou com uma reunião do conselho. Esperar ou não esperar as casas de câmbio de Foz abrirem. Se esperássemos, sairíamos mais tarde e chegaríamos à noite em Santa Fé – porém, conseguiríamos um câmbio bem mais em conta. Há uma diferença absurda entre o câmbio oficial (que só o governo argentino e o seu cartão de crédito aceitam) e o câmbio no paralelo. O bolso pesou na decisão, mas a decisão foi acertada – o câmbio oficial (peso/real) está em 0,31. Nas casas de câmbio de Curitiba, com cartão travel card, sairia 0,38, mais IOF, um roubo. Nós compramos por 0,23. Eu, que tinha dólares comprados antes da eleição, consegui excepcionais 0,19.  Não é nada não é nada, mas a viagem fica 30% mais barata, no mínimo. Só teve um porém – a casa de câmbio, a única que achamos aberta no dia 26, em Foz, nos passou três notas de 100 pesos falsas. Mas estamos tão escolados e diplomados em viagem na Argentina que já sabemos identificar até nota falsa – eu tenho uma na carteira (que recebi na fronteira de Barracão e um restaurante de Humahuaca se recusou a aceitar) justamente para comparar com o que nos entregam. O funcionário da casa de câmbio trocou as notas falsas sem reclamar, em um silêncio constrangedor – não se deu nem ao trabalho de fazer um teatro de, puxa vida, é falsa? Que horror, né? Obviamente, sabia que estava nos entregando dinheiro podre.

Mas o que é bom (dinheiro barato, neste caso) tem seu preço. Chegamos às 11h da noite em Santa Fé. O trânsito, na estrada, estava relativamente tranquilo (se compararmos com a viagem da Patagônia, em 2012, estava estupidamente tranquilo) – mas, depois de comprar o câmbio, aguardamos, somadas as filas, mais de uma hora na aduana e no primeiro posto de gasolina da Argentina. Já era umas 10h da manhã quando começamos a viajar.

Ainda na província de Entre Rios, um guarda em um posto policial no meio do nada parou o nosso carro. A Fran estava dirigindo. Ele fez sinal para abrir o vidro. Perguntou se era a primeira vez na Argentina – é tipo uma pergunta teste pra saber se estamos cientes da legislação obrigatória (segundo triângulo, carta verde, cabo de reboque, luz acessa na rodovia). Não, moço, nós já sabemos identificar até nota de Peso falsa. Estão a passeio? Sim, vacaciones. O cara já tinha manjado que não havia nada de irregular e estava diante de profissionais. E, na cara dura, sem nenhum tipo de explicação, não tem nenhuma contribución para nosotros? A Fran deu 12 pesos – R$2,40. O sujeito aceitou e a Lili até ficou com pena – parecia mais um pedinte que um policial.

Até Posadas, tudo foi bem. Mas, cerca de 250 km antes de chegar em Paraná, já era noite e caiu uma tempestade dos infernos. Em todo o trecho, pequenos sapos, aos milhares, estavam saltitantes no asfalto – pontos brancos que brilhavam com a luz do farol e o reflexo da água da chuva. Neste dia, oficialmente, matamos centenas de projetos de anfíbios. Los assassinos de sapos.

Foi o dia também que a Fran testou o Oi Girl. Hã, como explicar o Oi Girl? Lembro do dia que liguei para a Acampar e perguntei para a atendente se eles tinham. A moça não sabia o que era e eu precisei, com constrangimento, explicar. Bem, moça, é um, hã, dispositivo (dispositivo?) de silicone que permite que a mulher faça xixi em pé. Ou, em bom português, um pinto de plástico que a mulher acopla na virilha – excelente para a hora do aperto em banheiro sujo de postos de gasolina. E, bem, como a Fran se saiu? Eu achei que alguma coisa tinha saído errado depois de ela demorar mais de meia hora no banheiro e ter entrado com uma saia e ter saído com uma bermuda. Creio que a coisa exige um certo treinamento – mas a Fran está confiante para as experiências futuras.

Chegada no hotel em Santa Fé.  A Fran já de bermuda.



Chegamos no hotel bem cansados. Mas amanhã tem só estrada boa até Mendoza. A paisagem melhorará bastante – vamos chegar nos Andes.

domingo, 28 de dezembro de 2014

Dia 1 Carretera Austral - Tempo e espaço

25/12/2014 Curitiba-Foz do Iguaçu

Noite mal-dormida, como sempre. Planejamento sem fim, como sempre. Sexta viagem andina. É a mesma tripulação de 2012, também para a Patagônia. Suerte nossa.

A G chegou às 7h da manhã em casa e depois passamos para pegar a Lili, já em Large Field. A estrada estava tranquila, eu e a Fran trocamos várias vezes no volante, chegamos no final da tarde em Foz do Iguaçu. A Bruna emprestou a casa na Vila B e, antes da janta, deu tempo de passar na minha casa de infância, na Vila A.

Depois de 30 anos, a vila está de novo na minha frente. É como se ela entrasse no mundo de Guliver – aos olhos da criança, tudo era grande. O quintal era grande. A praça era grande. Na ladeira, a bicicleta sofria para chegar ao fim e o carrinho de rolimã descia sem medo. Agora tudo é miniatura – até o limite da vila, onde eu comprava os chicletes Ping Pong das figurinhas com os jogadores da Copa do Mundo de 82, ficou pertinho.  O muro, que o tio Tovo pulava de uma vez para impressionar todos nós (todos nós, meninos e a Tica, que precisávamos escalar para conquistá-lo), agora é um tímido amontoado de concreto, que não impressiona mais ninguém.

Pinheiro que a mãe plantou na casa de Foz

Não é só uma questão de espaço. É uma questão de tempo também. No parquinho, só havia mistura de mato com arbusto. Agora, as mudas, que a memória da infância não guardou, trouxeram um outro bosque – além dos bosques do início e do final da rua. E o pequeno pinheiro que a mãe plantou, no quintalzinho da casa em que eu e a Tica brincávamos de Playmobil, virou uma senhora árvore de uns 15 metros, pelo menos.

Casa de Foz. Agora com arame farpado.

As casas já não são todas de madeira escura. Muitos construíram uma casa de alvenaria no lugar. Outros trocaram as madeiras. Na nossa casa, já não é mais a mesma arquitetura, há um anexo na garagem onde o pai preparava o bagageiro de teto da brasília, há uma lajota em frente à porta da frente, é difícil reconhecer a casa da memória. Mas o ar bucólico da vila permaneceu, ainda parece o paraíso da infância – mas, diferente da nossa época, não há mais uma criança na rua. E cerca elétrica em muitas casas. Na nossa, um arame farpado circunda todo o terreno.

O parquinho na frente da casa: agora com árvores.

Contornamos a vila para chegar na área de lanchonetes próxima do centro – no caminho, passamos pela construção onde era a Cobal, o supermercado, e agora uma carcaça abandonada. Jantamos, voltamos para a vila B e, antes de tomar banho, vejo o aquecedor de passagem da minha infância (um grande barril branco, suspenso no teto) e os taquinhos de madeira que também estavam no nosso chão.


Desmaiamos. Noite mal dormida não perdoa.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Dia 4 – Salta – Humahuaca 245km

16/06/14

Acorda, toma banho, se veste e coloca o óculos. Cadê os óculos? Fran, cadê os óculos? Nada. Depois de revirar o quarto do hotel: só pode estar no restaurante de ontem à noite, tirei os óculos porque o vapor quente da cazuella embaçava.

Tudo bem. Parece que toda viagem eu perco alguma coisa. Já perdi cartão de crédito, carteira, agora os óculos. O lado bom é que com o tempo você já não se desespera mais. E até acha que dá sorte na viagem. Duas horas depois, passamos no restaurante e resgatamos a vítima, sã e salva.

Hermanos preocupads com a Copa


Hoje, viagem mais curta, só 245km – isto pra nós é tipo dar a volta na quadra. Mas estratégico: dormir a 3.000m, em Humahuaca, para  não sofrer com altitude no Paso de Jama. E também curtir a estrada, finalmente chegamos nos Andes.
A estrada para a Quebrada de Humahuaca é magnífica


Da quebrada de Humahuaca, já conhecíamos Tilcara e Purmamarca. Tilcara é uma belezinha, cheia de charme, Purmamarca é menor. Humahuaca é a maior, e talvez a mais autêntica, a com mais vida própria. É muito incrível que nestes pequenos vilarejos pulsa uma cultura riquíssima, com arquitetura particular (as casinhas de adobe), comida ímpar (bem andina, muito próxima do Peru e Bolívia), música própria e artesanato original (muitas coisas lindas com barro).

Restaurante muito bom em Humahuaca!


Almoçamos no centrinho, num restaurante muito bom – o Portillo. E barato. Tá barato viajar na Argentina de novo. Depois, subimos até o mirante da vila – o que foi difícil, o ar rarefeito se faz sentir. E entramos no nosso hotel para dormir e sair para jantar depois.

 
A simpática Humahuaca. Já em altitude.