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quinta-feira, 30 de julho de 2015

Dia 9 – Cusco – 25/07


Dormimos até mais tarde, até o limite do tempo do café da manhã – é preciso descansar. O dia anterior foi puxado demais. Descobrimos com o guia da Lonely Planet que o bairro de San Jeronimo, onde estamos, é um bairro cool, fora do eixo mais turístico da cidade, bonito, autêntico e que vale a pena ser visitado. Com isto, ficamos mais calmos – não é preciso estar próximo da Plaza de Armas para se aproveitar Cusco.

A foto clássica na Plaza de Armas de Cusco.


De táxi, começamos a explorar a cidade pelo centro histórico. O taxista tem cara da selva amazônica, o rosto é negro e é índio, ele vem de Porto Maldonado, que fica na fronteira com o Acre. No rádio, música brasileira ruim – mas o português dos autofalantes do carro me chamou a atenção e puxei papo. O menino estuda direito em Cusco, curso que aqui dura seis anos. Ele dirige um Suzuki minúsculo (marca que no Peru é tão popular quanto no Chile, talvez pela facilidade de importação pelo Pacífico), caindo aos pedaços e com um cobertor sobre o painel frontal, abaixo do para-brisa.

Qoricancha, tempo do sol dos Incas - e uma igreja espanhola construída em cima.

 
A perfeição dos encaixes incas. Tudo a prova de terremotos. Dentro das pedras, há encaixes como os de um quebra-cabeca.
O cobertor, que evita que o painel entre em ebulição com o calor cuzquenho de inverno que nos surpreende de dia, vivia caindo e de tempos em tempos, como um tique nervoso, ele tira a mão do volante e puxa o cobertor. Fiquei pensando se no Peru não está acontecendo o mesmo problema que no Brasil: o ensino superior ficou mais acessível, mas não houve desenvolvimento suficiente na economia para absorver a quantidade de novos bacharéis. No caso do direito, hoje o Brasil é o país que mais tem bacharéis do mundo – muitos não vão nunca passar no teste da OAB e a grande maioria vai trabalhar em outras profissões. Como taxista, por exemplo. É de se pensar se uma população com mais tempo de estudo não é melhor para qualquer país – uma justificativa para mais universidades. Mas o ideal não seria o superior técnico? O Brasil ainda vê com preconceito este tipo de ensino – mas é o padrão do superior  (depois do médio) na Europa.

Fran feliz no artesanato de San Blás.
Você vai andando por Cusco e acha estes pátios espanhóis em todo o canto.


Cusco é a cidade mais bonita do Peru – difícil pensar diferente. O centro histórico é magnífico. E o contraste violento (violência é uma palavra-chave para se entender o Peru) entre a civilização Inca e a Espanhola está visível em todos os lados. Talvez a gente não perceba tanta violência na colonização portuguesa no Brasil porque aquilo que é visível para nós o tempo todo fique invisível. Ou porque a tipologia da violência do Brasil que permaneceu é de outra natureza: a escravidão – não está na arquitetura da cidade, mas na brutalidade das relações sociais, mais difícil de ser apreendida aos olhos de viajante. Ou porque aqui havia de fato um império e o choque entre impérios é mais traumático e visível – como entre mouros e cristãos. De um jeito ou de outro, é chocante.

Ladeiras de San Blás, já anoitecendo.


Começamos o dia no Qoricancha, o antigo templo de cerimônias inca. Hoje, há uma igreja católica exatamente sobre o templo – a mesma coisa que os espanhóis fizeram com as mesquitas, depois da expulsão dos árabes. Tudo aquilo que se diz sobre os incas é verdade – comparando com os demais povos indígenas do continente, o desenvolvimento é mesmo impressionante, em vários aspectos. Há tecnologia, arquitetura, arte, culinária, complexa hierarquia social, estradas, um império gigantesco que abrange quase todos os limites dos Andes. Mas há uma armadilha que é fácil cair aqui (e que é induzida o tempo todo por guias e pelos museus de Cusco): pensar que os incas eram anjos, os espanhóis os demônios e eis uma visão completamente equivocada da história. É bom lembrar, para começo de conversa, que os próprios incas também eram conquistadores e também montaram seu próprio império, com armas e sangue.

No centro histórico de Cusco.


No museu do Qoricancha, um quadro compara a religião cristã com a inca. E outro compara a filosofia ocidental com a inca. É um panfleto para se ter ódios do europeus – quanto à violência, é difícil discordar e não se compadecer do massacre que aconteceu. Mas, como todo panfleto, é uma caricatura, uma simplificação grosseira e uma peça de propaganda. Por exemplo, no quadro comparativo, a ciência ocidental é vista somente como um modelo de dominação da natureza – e não, também, como uma forma bastante poderosa e eficiente de explicação de mundo. Uma criança ocidental, ainda no primário, é capaz de entender cientificamente por que uma chuva ocorre. Mas para os incas, era uma questão exclusivamente mística e crianças foram sacrificadas aos montes para que os deuses fizessem chover. Em tempos em que, no ocidente, é proibido comparar civilizações – ainda um mea culpa de toda a violência do eurocentrismo – é o caso de se perguntar se, tivessem contato com uma explicação racional do mundo, os sacrifícios (ainda comuns na África) continuariam acontecendo no mundo não ocidental.

Todos aqueles ocidentais que idolatram as civilizações não ocidentais deveriam se perguntar por que permanecem ocidentais. Em uma aula do mestrado da filosofia, um debate, um aspecto não filosófico, mas importante na comparação de civilizações: eram os alemães da Berlim comunista (aquela que se autoproclamava o paraíso na terra) que tentavam pular o muro e não o contrário. O fato é que faz parte da natureza humana fazer comparações e, como humanos, são os índios que desejam o ocidente e não o ocidente que deseja morar com os povos da floresta. É uma discussão difícil – o ocidente é multifacetado, e as guerras e as religiões ocidentais dos séculos passados não são as mesmas do presente. O erro parece acontecer em duas frentes: infantilizar a história e simplificar o que significa ser ocidental.

Noite em San Blás.



Antes do Qoricancha, fomos para o museu de arte popular (uma bela amostra do artesanato cusquenho), almoçamos no Ciciollina (um explêndido restaurante italiano, no coração do centro histórico) e subimos as maravilhosas ladeiras de São Blás, até encontrarmos a igreja. De lá, voltamos a pé pelo centro histórico, passamos novamente pela Plaza de Armas e avançamos até quase o mercado San Pedro, passando por muitas igrejas – como na colonização brasileira em Minas, há pencas de igreja. Voltamos tudo, jantamos no Sara (eu comi uma sopa de verduras, já melhor) e desmaiamos no hotel.

3 comentários:

  1. Ola, estou me programando para fazer esta viagem a Machu Picchu de carro, tem alguma dica ou cuidado a ser tomado? Sabe me dizer mes de dezembro e tranquilo?
    Devo fazer o roteiro (Corumba/ La Paz/ Cusco/ Arequipa/ Iquique/ Uyuni/ San Pedro/ Salta/ Foz Iguacu)

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  2. Ola, estou me programando para fazer esta viagem a Machu Picchu de carro, tem alguma dica ou cuidado a ser tomado? Sabe me dizer mes de dezembro e tranquilo?
    Devo fazer o roteiro (Corumba/ La Paz/ Cusco/ Arequipa/ Iquique/ Uyuni/ San Pedro/ Salta/ Foz Iguacu)

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  3. Olá, expedição Elohim

    Tudo bem? Veja, nós tentamos fazer a viagem de carro no ano passado, mas nos acidentamos no Paso de Jama, por conta da altitude (acabei perdendo a consciência quando estávamos a quase 5000m). Então a primeira dica é: muito cuidado com a altitude, especialmente no roteiro San Pedro-Salta. Tomem chá de coca, muito líquido e, preferencialmente, tenham mais de um motorista - para descansar. De resto, uma super dica é dar uma olhada no site Viajando de Carro, que recentemente fez um roteiro parecido com o de vocês: http://viajandodecarro.com.br/ Abraços.

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