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quarta-feira, 18 de janeiro de 2012


A ambulância que me aguardava em frente à pousada de Colônia, no Uruguai. (foto: Ge)

Dia 22 e 23 – 12 e 13/01/2012 Entrando no Uruguai

Os olhos estalados da pajé da tribo, alguém mentia, certamente. O dedo indicador, frenético, apontava a minha barriga. O prazer do médico, o gozo que justifica estudar horas a fio para aquele vestibular insano, é o da surra moralista. Todo médico sonha em dizer o que você pode e o que você não pode fazer – é a justificativa secreta da profissão. 

Depois de toda aquela entrada alucinada no Uruguai, eu, deitado na cama da Posada de las Flores; as meninas, em pé, na ponta da cama, me olhando assustadas; e uma ambulância me esperava na porta: mas não é uma constipação, uma simples prisão de ventre, doutora? E então a pajé, com os cabelos longos enrolados na cabeça tal qual um turbante, orgulhosamente grisalhos, ao lado do enfermeiro gordo de respiração profunda (um Sancho Pança que foi incapaz de tirar a minha pressão), pôde chegar ao orgasmo: é claro que não, de jeito nenhum. Isto é a dor de toda a porcariada que você comeu.

Fazia dois dias que estava com cólicas. Nunca tive problemas de prisão de ventre – muito pelo contrário, um Yakult sempre foi nitroglicerina pra mim. Os espasmos foram ficando mais freqüentes e, quando chegamos em Colônia, na dúvida, melhor ligar para o número do seguro saúde. Mas a dona da pousada insistiu, não, imagina, um ótimo serviço gratuito me aguardava. E então a velha feiticeira chegou. De ambulância.

Ela massageava a minha barriga com vigor e queria me desmentir: sente dor aqui? Não sentia, mas fiquei com medo de dizer não. Na minha cabeça: já estou curado, doutora. A mão entrava por debaixo da minha costela, o olho da inquisição chegava perto do meu rosto, um sussurro: aqui, também não sente dor? Seria quase um insulto dizer que não sentia nada, mas era a pura verdade. Está seguro? Não, não sinto, doutora.

Ela queria pegar um mentiroso, dizia pausadamente: estou apalpando a sua vesícula biliar, entendeu, e, o sorriso de quem venceu uma discussão, a sua vesícula biliar está inchada. Então a pergunta que os pagãos devem responder para a madre superiora: o que você comeu nos últimos dias? A verdade, a verdade verdadeira seria a dieta preferida do turista na Argentina: bife de chorizo do café da manhã ao jantar, com vinho ou cerveja. Dentro do carro, só pão, maionese e bolacha. As sobrancelhas erguidas: verduras? Disse baixinho, quase com medo de apanhar, não, doutora.

Tudo aquilo estava parecendo um delírio melodramático, a consulta dentro de uma novela mexicana, mas a velha não teve dúvidas de me apontar uma seringa. Buscopan na veia, alivia os espasmos, sabe. A Ge, lá fora, com prazer, tirava fotos da ambulância, a Fran de olhos fechados, só a Lili viu a velha e o Sancho Pança perderem a veia do dorso da minha mão direita e o leite vermelho entrar vagarosamente na seringa. Isto enfureceu a bruxa, que agora dizia que minhas veias eram feias porque eu não comia verduras. Feche a mão, com força. Só abri a minha mão quinze minutos depois – sob autorização negociada. A luva plástica estrangulava o meu punho. E os tapinhas para achar a veia vieram como tabefes.

Lili e Fran sentadas no Buque Bus (estava lotado!), observando o reflexo. (foto: Ge).
Os dois últimos dias tinham sido cansativos. No primeiro, a viagem no meio do nada, de Bariloche a Santa Rosa. Não tinha nem mato no horizonte para distrair a vista. E a chegada em Buenos Aires foi estressante como costuma ser, com quatro pistas entupidas de carros velozes, num quadriculado caótico de vias à esquerda e à direita. Sem passagem comprada, ficamos na lista de espera do Buque Bus, o serviço de balsa até o Uruguai e, durante as duas horas até a saída, passeamos pelo Porto Madero. Foi ali que a cólica aumentou. E aumentou mais com a grosseria do argentino idiota que não queria dizer para as meninas, até quinze minutos antes da saída da balsa, se poderíamos embarcar ou não. Depois de uma paciência infinita, a Fran corre para o estacionamento, onde aguardo com o carro ligado, e diz para eu entrar de qualquer jeito. Depois corremos para a aduana, mas, no final das escadas rolantes, argentinos dizem que precisamos pegar as passagens. Descemos tudo, corremos de novo, pega o papel, sobe escada rolante, corremos para a aduana, os uruguaios pedem pressa, nunca tive o passaporte carimbado tão rápido. Entramos com a balsa de motores ligados. Suspiro de alívio. Ofegantes, comemoramos, deu certo, xingamos mais uma vez o argentino, conseguimos entrar no Uruguai conforme o programado.

Dieta: pêssego, maçã, chá. Olha a minha cara de alegria. (foto: Lili).
 Pão? Não. Nem queijo, nem vinho, nem carne, nem bolacha, nem maionese. Agora você precisa de ameixa. Pêssego. Maçãs. Beterraba. Enfim, as coisas que eu como nos anos bissextos. Buscopan de oito em oito horas. Beba esta vaselina que não vai ser absorvida pelo seu estômago, de manhã e de noite. Durante quantos dias, doutora? Até o intestino funcionar novamente e aquele olhar de quem me considerava uma raça inferior.

2 comentários:

  1. André,
    a mãe mandou dizer que maçã não é bom, pq prende...
    mandou vc comer duas laranjas inteiras, com bagaço, sem casca! damasco seco, mamão e uvas com casca são tiro e queda! ela disse que tem que ser bem lavadinho! heheheh
    melhoras aí!
    beijos

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  2. Aninha, dois dias depois eu já estava bom! Já chegamos - estou postando as últimas coisas da viagem, o blog está uns 5 dias atrasados. Com tanta coisa pra fazer, não dava tempo pra escrever. Em breve, passamos na praia. Beijos

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