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A ambulância que me aguardava em frente à pousada de Colônia, no Uruguai. (foto: Ge) |
Dia 22 e 23 – 12 e 13/01/2012
Entrando no Uruguai
Os olhos estalados da pajé da tribo,
alguém mentia, certamente. O dedo indicador, frenético, apontava a minha
barriga. O prazer do médico, o gozo que justifica estudar horas a fio para
aquele vestibular insano, é o da surra moralista. Todo médico sonha em dizer o
que você pode e o que você não pode fazer – é a justificativa secreta da
profissão.
Depois de toda aquela entrada
alucinada no Uruguai, eu, deitado na cama da Posada de las Flores; as meninas, em pé, na ponta da cama, me
olhando assustadas; e uma ambulância me esperava na porta: mas não é uma
constipação, uma simples prisão de ventre, doutora? E então a pajé, com os
cabelos longos enrolados na cabeça tal qual um turbante, orgulhosamente grisalhos,
ao lado do enfermeiro gordo de respiração profunda (um Sancho Pança que foi incapaz
de tirar a minha pressão), pôde chegar ao orgasmo: é claro que não, de jeito
nenhum. Isto é a dor de toda a porcariada que você comeu.
Fazia dois dias que estava com
cólicas. Nunca tive problemas de prisão de ventre – muito pelo contrário, um
Yakult sempre foi nitroglicerina pra mim. Os espasmos foram ficando mais
freqüentes e, quando chegamos em Colônia, na dúvida, melhor ligar para o número
do seguro saúde. Mas a dona da pousada insistiu, não, imagina, um ótimo serviço
gratuito me aguardava. E então a velha feiticeira chegou. De ambulância.
Ela massageava a minha barriga
com vigor e queria me desmentir: sente dor aqui? Não sentia, mas fiquei com
medo de dizer não. Na minha cabeça: já estou curado, doutora. A mão entrava por
debaixo da minha costela, o olho da inquisição chegava perto do meu rosto, um
sussurro: aqui, também não sente dor? Seria quase um insulto dizer que não
sentia nada, mas era a pura verdade. Está seguro? Não, não sinto, doutora.
Ela
queria pegar um mentiroso, dizia pausadamente: estou apalpando a sua vesícula
biliar, entendeu, e, o sorriso de quem venceu uma discussão, a sua vesícula
biliar está inchada. Então a pergunta que os pagãos devem responder para a madre
superiora: o que você comeu nos últimos dias? A verdade, a verdade verdadeira
seria a dieta preferida do turista na Argentina: bife de chorizo do café da
manhã ao jantar, com vinho ou cerveja. Dentro do carro, só pão, maionese e
bolacha. As sobrancelhas erguidas: verduras? Disse baixinho, quase com medo de
apanhar, não, doutora.
Tudo aquilo estava parecendo um
delírio melodramático, a consulta dentro de uma novela mexicana, mas a velha
não teve dúvidas de me apontar uma seringa. Buscopan na veia, alivia os
espasmos, sabe. A Ge, lá fora, com prazer, tirava fotos da ambulância, a Fran
de olhos fechados, só a Lili viu a velha e o Sancho Pança perderem a veia do
dorso da minha mão direita e o leite vermelho entrar vagarosamente na seringa. Isto
enfureceu a bruxa, que agora dizia que minhas veias eram feias porque eu não
comia verduras. Feche a mão, com força. Só abri a minha mão quinze minutos
depois – sob autorização negociada. A luva plástica estrangulava o meu punho. E
os tapinhas para achar a veia vieram como tabefes.
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Lili e Fran sentadas no Buque Bus (estava lotado!), observando o reflexo. (foto: Ge). |
Os dois últimos dias tinham
sido cansativos. No primeiro, a viagem no meio do nada, de Bariloche a Santa
Rosa. Não tinha nem mato no horizonte para distrair a vista. E a chegada em
Buenos Aires foi estressante como costuma ser, com quatro pistas entupidas de
carros velozes, num quadriculado caótico de vias à esquerda e à direita. Sem
passagem comprada, ficamos na lista de espera do Buque Bus, o serviço de balsa
até o Uruguai e, durante as duas horas até a saída, passeamos pelo Porto
Madero. Foi ali que a cólica aumentou. E aumentou mais com a grosseria do
argentino idiota que não queria dizer para as meninas, até quinze minutos antes
da saída da balsa, se poderíamos embarcar ou não. Depois de uma paciência
infinita, a Fran corre para o estacionamento, onde aguardo com o carro ligado,
e diz para eu entrar de qualquer jeito. Depois corremos para a aduana, mas, no
final das escadas rolantes, argentinos dizem que precisamos pegar as passagens.
Descemos tudo, corremos de novo, pega o papel, sobe escada rolante, corremos
para a aduana, os uruguaios pedem pressa, nunca tive o passaporte carimbado tão
rápido. Entramos com a balsa de motores ligados. Suspiro de
alívio. Ofegantes, comemoramos, deu certo, xingamos mais uma vez o argentino, conseguimos
entrar no Uruguai conforme o programado.
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Dieta: pêssego, maçã, chá. Olha a minha cara de alegria. (foto: Lili). |
Pão? Não. Nem queijo, nem
vinho, nem carne, nem bolacha, nem maionese. Agora você precisa de ameixa.
Pêssego. Maçãs. Beterraba. Enfim, as coisas que eu como nos anos bissextos. Buscopan
de oito em oito horas. Beba esta vaselina que não vai ser absorvida pelo seu
estômago, de manhã e de noite. Durante quantos dias, doutora? Até o intestino
funcionar novamente e aquele olhar de quem me considerava uma raça inferior.